Historicamente, a ordem mundial imposta por qualquer potência sempre reflete sua própria estrutura interna. Isso não acontece por acaso, governos, empresas e instituições locais estão acostumados a operar dentro de um determinado sistema e, se forem forçados a administrar um modelo externo conflitante, surgirão resistências. O poder global exige continuidade, previsibilidade e legitimidade — mesmo quando imposto pela força. Para garantir esses elementos, as regras que uma nação projeta para o mundo precisam ser aquelas que sustentam sua estabilidade interna. Caso contrário, há uma fratura entre a política externa e a realidade doméstica, uma contradição que acaba por minar a própria ordem que essa potência busca estabelecer.
Os Estados Unidos são o exemplo mais recente desse
fenômeno. A ordem liberal internacional criada no pós-guerra foi uma extensão
direta do seu próprio sistema político e econômico: livre mercado, instituições
multilaterais, direitos individuais e a primazia de um Estado de Direito que,
ao menos em teoria, protegia e dava previsibilidade às relações internacionais.
Essa coerência foi crucial para a durabilidade do sistema. As empresas
americanas prosperaram porque as regras internacionais favoreciam o livre
comércio e a legitimidade dessa ordem era reforçada pelo próprio sucesso
econômico e cultural dos EUA.
Mas toda ordem dominante carrega em si os germes de
sua contestação. Ao contrário da União Soviética, que tentou projetar o seu
modelo para fora, a China não desafiou esse sistema. Pelo contrário, ela se
infiltrou nele, se beneficiou de suas estruturas e, ao se fortalecer, começou a
miná-lo. Usou as regras de livre comércio para impulsionar seu crescimento,
aproveitou a interdependência econômica para expandir sua influência e, ao
mesmo tempo, manteve um sistema interno rigidamente controlado, imune às
pressões políticas que corroeram outras economias abertas. O resultado é que,
hoje, os EUA veem sua própria criação voltando-se contra eles: um mundo de
mercados abertos, multinacionais poderosas e interdependência econômica que, em
vez de reforçar a hegemonia americana, tem servido para projetar a ascensão da
China.
Diante desse cenário, os Estados Unidos se veem
forçados a reformular ou até mesmo desmontar a ordem que criaram. No entanto,
qualquer nova configuração global exigirá uma transformação interna
correspondente, pois, como já discutido, nenhuma potência pode sustentar por
muito tempo uma estrutura externa que contradiga sua própria realidade
doméstica sem gerar instabilidade. E é nesse ponto que reside o maior desafio:
se a nova ordem mundial avança rumo a um modelo menos liberal e mais
autocrático — não por convicção ideológica, mas por falta de alternativas
viáveis —, os EUA precisarão ajustar sua própria estrutura interna para manter
essa coerência. Mas até que ponto a sociedade americana estará disposta a
aceitar essa mudança?
Essa transição não será simples. A história sugere
que quando um país tenta mudar sua posição global sem um consenso interno
sólido, enfrenta turbulências políticas, divisões sociais e crises
institucionais. Os Estados Unidos não são um Estado unitário como a China, onde
mudanças podem ser implementadas sem oposição significativa. O pluralismo
americano, que antes era uma força, pode agora se tornar um obstáculo. Há
elites que se beneficiarão de uma ordem menos aberta e mais pragmática, mas
também há forças poderosas que resistirão a qualquer erosão das tradições
democráticas. Esse conflito interno pode paralisar decisões estratégicas e
enfraquecer a posição americana no momento mais crítico da transição.
O que está por vir, então, não é apenas a
substituição de uma ordem mundial por outra, mas um longo período de transição
cheio de contradições e incertezas. Os EUA não podem simplesmente decretar um
novo sistema global sem resolver suas próprias crises internas.
As perguntas que surgem dessa nova realidade
permanecem abertas: os EUA conseguirão preservar sua identidade política
enquanto reformulam sua estratégia global? Como a sociedade americana reagirá
às inevitáveis pressões que essa mudança trará? A China quer substituir os EUA
como potência hegemônica ou prefere um modelo de influência econômica sem um
domínio ideológico explícito? E se nenhuma das potências conseguir impor um
novo modelo, o mundo entrará em um período prolongado de fragmentação e
instabilidade?
O jogo de poder global está em aberto, e os EUA
precisam decidir se serão os arquitetos da nova ordem ou apenas mais um ator
tentando se ajustar a ela. A questão não é apenas sobreviver à mudança, mas
definir os termos dessa mudança antes que outros o façam por eles.
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