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A solidão de quem percebe demais

Há uma solidão que não vem do abandono, nem da distância, nem da ausência de amor. Vem do excesso. Do excesso de lucidez. Daquela percepção aguda que atravessa a superfície das coisas e vê mais fundo — às vezes, fundo demais.

É a solidão de quem percebe demais.

Não falo de inteligência, nem de erudição. Falo de sensibilidade afiada. Daquele tipo de alma que escuta o que não foi dito, que percebe no olhar alheio o cansaço escondido, que decifra o silêncio como se fosse linguagem materna. De quem nota a tristeza antes do choro, o afastamento antes da ausência, a mentira dentro da verdade bem contada.

E, por isso, carrega o fardo de ver o que os outros ainda não conseguem ver.

Às vezes, essa percepção parece um dom. Outras vezes, uma maldição. Porque não é fácil manter conversas leves quando se sabe o que está por baixo. Não é fácil rir de certas banalidades quando se conhece o abismo atrás do riso. Não é fácil pertencer a um grupo quando o seu olhar caminha dois passos à frente — e volta, quieto, para não incomodar.

Quem percebe demais precisa, muitas vezes, fingir que percebe de menos, só para conseguir continuar conversando.

Há noites em que esse tipo de solidão pesa mais. Porque não há ninguém ali para partilhar o pensamento até o fim. Porque todo mundo prefere parar na metade, onde ainda é confortável. Onde ainda se ri. Onde ainda se evita a ferida.

E então, quem sente fundo recolhe-se. Aprende a silenciar ideias, a guardar reflexões como quem esconde um tesouro que ninguém quer. Aprende a ser gentil com o mundo que não quer ver demais. E, com o tempo, aprende também a se amar assim: afiado, intenso, incômodo.

Mas, vez ou outra, a alma se cansa de tanta contenção. E chora. Não por solidão de companhia, mas por saudade de alguém que ouça com a mesma profundidade com que ela sente. Que vá até o fundo sem medo de afundar.

Quem entende demais não quer muito. Só quer encontrar um outro que também tenha olhos para além das palavras.

E, até que isso aconteça, vai continuar escrevendo, pensando, esperando. Em silêncio. Mas inteiro.



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