E se bastasse amar para criar um filho? E se, ao invés de buscar a perfeição nos manuais, nos fóruns especializados e nas últimas descobertas da neurociência, os pais voltassem a confiar no instinto, na presença e no gesto imperfeito, mas afetuoso? A pergunta pode soar ingênua, até perigosa, num tempo em que há tanto a saber sobre a infância, o desenvolvimento emocional e os impactos das relações familiares. Mas talvez seja exatamente aí que mora o problema: a desconfiança crescente de que o amor, sozinho, já não seja suficiente.
Ao se observarem as histórias contadas por adultos
de hoje sobre suas infâncias, não é raro ouvir lembranças marcadas pela
simplicidade. Falam do abraço do pai, da atenção da mãe, de uma conversa antes
de dormir. Falam, até mesmo, dos rigores que sofreram — mas enxergam neles um
gesto de cuidado, uma forma de amor, ainda que às vezes dura. Era uma criação
imperfeita, sim, mas enraizada na presença e na entrega. Não havia tanto
método, mas havia vínculo. E, por isso, muitos olham para trás com uma ternura
que ultrapassa os erros.
Na contramão desse passado afetivo, os pais atuais
vivem sob a vigilância de um ideal. Sentem-se pressionados a acertar desde o
primeiro ultrassom. Cercados de dados, técnicas, especialistas e diagnósticos,
passam a temer o erro como se ele deixasse marcas irreparáveis. O amor, então,
já não basta. Precisa ser validado, embasado, certificado por fontes
confiáveis. Surge uma nova gramática da criação: emocionalmente responsivo,
pedagogicamente consciente, neurologicamente adequado. Não basta amar — é
preciso amar do jeito certo.
Esse deslocamento do afeto para a performance tem
raízes profundas. Há, primeiro, o medo: medo de repetir padrões, de traumatizar
sem querer, de ser o elo fraco na corrente da saúde emocional dos filhos.
Depois, há a cultura da eficiência. Crianças passam a ser vistas, mesmo que
inconscientemente, como reflexo da competência dos pais. Seu comportamento, seu
vocabulário, sua autonomia, são interpretados como indicadores de sucesso ou
fracasso familiar. A criação vira um projeto, e os filhos, uma espécie de
currículo vivo.
Some-se a isso o desaparecimento das redes de
apoio. O que antes era dividido entre avós, vizinhos, madrinhas e amigos, hoje
recai sobre poucos ombros. Isolados, os pais recorrem a especialistas — porque
não têm a quem recorrer. No lugar da avó que acalmava o bebê com sabedoria
simples, entra o podcast de neurodesenvolvimento. No lugar da vizinha que dizia
“isso passa”, entra o algoritmo com cinco possíveis diagnósticos e um curso de
parentalidade consciente.
Esse cenário vai minando o espaço da
espontaneidade. O gesto natural é constantemente avaliado: “Será que isso é
acolhedor o bastante? ”, “Será que estou regulando as emoções dele ou apenas
sendo permissivo? ”. O afeto vira um campo de dúvidas. E quando o amor precisa
pedir licença à teoria para se expressar, algo essencial se rompe.
O resultado é uma geração de pais exaustos, não por
falta de entrega, mas por excesso de cobrança. Tentam fazer tudo certo, mas se
sentem constantemente aquém. Ao mesmo tempo, criam filhos hiperestimulados, mas
por vezes distantes de vínculos realmente íntimos — porque até o tempo juntos é
planejado, mediado, estruturado.
Talvez seja hora de fazer a pergunta incômoda: e
se, ao tentar acertar demais, estivermos nos afastando do que mais importa? E
se o amor — aquele que não tem manual, que às vezes erra, mas se reconcilia,
que nem sempre sabe o que fazer, mas está lá — for exatamente o que está
faltando?
Não se trata de desprezar os avanços da ciência ou
romantizar o passado. Trata-se apenas de lembrar que, acima de toda técnica,
deveria haver afeto. E que, talvez, o maior presente que pais e mães possam dar
aos seus filhos não seja a criação perfeita, mas a presença imperfeita, honesta
e profundamente amorosa.
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