Pela janela do quarto tenho o privilégio de apreciar uma encantadora igrejinha. Inúmeras vezes, entreguei-me à contemplação desse monumento, que exibe em sua estrutura as linhas de séculos passados. A modesta porta, ainda adornada com luzes e enfeites natalinos, é como uma porta do tempo, que me transporta para terras distantes. Sobre a porta, desponta uma janela alongada, enquadrada pelas laterais de um telhado inclinado, como se esperasse pela neve que jamais vestiu o local. Além da fachada, a igreja se estende elegantemente em harmonia com a praça, até alcançar o término de sua breve extensão.
Neste exato momento, apreciando a
bela igrejinha, testemunho o desfecho das cerimônias da despedida de Horácio. O
cortejo deixa o santuário rumo ao cemitério, apressando-se como se buscasse
evitar interferir nas alegres celebrações do Dia de Reis prestes a iniciar-se.
A modéstia da caravana presente surpreende. Entre eles encontram-se, a mãe, o
filho e poucos amigos que permaneceram ao seu lado até o último adeus. À medida
que os grãos de areia de sua ampulheta foram se esvaindo, carregaram consigo os
amigos que um dia conquistou, deixando apenas aqueles que resistiram aos
caprichos do destino.
A viúva derramava lágrimas pela
perda do marido. Sua atitude preveniu o embaraço de não haver ninguém a
manifestar publicamente o luto pela ausência do falecido.
A sua morte era esperada e, em
alguns aspectos, até desejada. Ele lutava contra uma doença degenerativa que se
manifestava por atrofia muscular progressiva, tornando desafiadoras tarefas
simples como andar, sentar, levantar-se e, no estágio final, até mesmo manter a
cabeça erguida. Antes que a doença se estabelecesse por completo, Horácio
expressou repetidamente o desejo de abreviar a sua passagem. Sua enfermidade
transformava sua existência em um tormento, tanto para ele quanto para os
familiares que o acompanhavam.
No entanto, a prática da
eutanásia é proibida no Brasil, tornando esse caminho uma opção inviável.
Contudo, essa circunstância desencadeou uma discussão entre a mulher e o filho
de Horácio sobre a pertinência de considerar, pelos menos hipoteticamente, a
aplicação da eutanásia em situações semelhantes à dele.
A esposa de Horácio,
possivelmente influenciada por sua formação religiosa, opunha-se
categoricamente à eutanásia. Sua resistência era embasada em princípios éticos
que, em sua opinião, enalteciam a sacralidade da vida. Ela afirmava que a vida
humana possui um valor intrínseco, e decidir conscientemente encerrá-la iria de
encontro a princípios éticos e religiosos fundamentais. Para ela, o compromisso
em não causar intencionalmente dano a outros representava um alicerce ético que
era questionado quando se considerava a eutanásia.
Além disso, ela levantava uma
importante reflexão sobre os potenciais abusos e influências externas que
poderiam impactar a decisão de um paciente em optar pela eutanásia. O temor
estava enraizado na preocupação de que fatores, como a falta de recursos
financeiros, pressões familiares, como Horácio mesmo mencionava, ou sociais,
pudessem comprometer a autonomia do indivíduo, pressionando-o a tomar decisões
precipitadas e, por vezes, não plenamente alinhadas com a sua verdadeira
vontade.
Ela também argumentava que a questão
da estabilidade emocional do paciente ao considerar a eutanásia seria outro aspecto
crucial que demandaria atenção cuidadosa. A esposa de Horácio, ao opor-se à
eutanásia, considerava a possibilidade de que o paciente, em um momento de
profundo sofrimento físico ou psicológico, poderia não estar emocionalmente
equilibrado para tomar decisões de tamanha magnitude.
A instabilidade emocional poderia
surgir devido a vários fatores, incluindo a gravidade da condição médica, a dor
física intensa, a ansiedade em relação ao futuro ou até mesmo a influência de
medicamentos. Em situações tão delicadas, as emoções do paciente poderiam
oscilar, afetando sua capacidade de raciocínio claro e tomada de decisões
informadas.
A esposa de Horácio, ao expressar
sua oposição, considerou o risco de decisões precipitadas ou movidas por
impulsos emocionais intensos, que poderiam não refletir verdadeiramente os
desejos do paciente em um estado mental mais equilibrado.
As argumentações do filho de
Horácio, e possivelmente do próprio Horácio, seguiam na direção contrária à da
mãe. Ele defendia que a eutanásia respeitava a autonomia do paciente,
concedendo-lhe o direito de decidir sobre o próprio fim de vida. Em contraste
com a opinião da mãe, ele sustentava a visão de que o direito de escolher
quando e como morrer deve ser preservado como uma extensão dos direitos humanos
fundamentais.
Um dos argumentos centrais do
filho era a busca pelo alívio do sofrimento. Argumentava que a eutanásia
proporcionava uma opção compassiva para pessoas como o pai, que enfrentavam uma
dor física insuportável ou uma qualidade de vida extremamente prejudicada,
permitindo-lhes um fim de vida digno, oferecendo-lhes a oportunidade de evitar
uma deterioração prolongada e uma morte agônica. Para ele, isso era percebido
como um componente essencial para preservar a dignidade individual.
Ele também sustentava que, nos
dias atuais, diante do avanço da medicina, a prolongação artificial da vida em
determinadas circunstâncias pode se tornar uma prática ética e emocionalmente
mais desafiadora do que permitir uma morte consentida, especialmente quando a
qualidade de vida se encontra em um estado mínimo, semelhante à do pai. Diante
dessa realidade, ele enfatizava a necessidade de atribuir a devida importância
ao consentimento do paciente, sublinhando que a eutanásia deveria ser realizada
exclusivamente com a expressa concordância do indivíduo, após compreensão
completa das opções disponíveis.
Do vão da minha janela,
observando a cerimônia fúnebre de Horácio, vi-me, por um instante, imerso na
mesma situação que ele encarou, o que me levou a uma contemplação profunda
sobre as intricadas decisões no ocaso da existência. Cada argumento que
perpassou meus pensamentos não representa apenas convicções pessoais, mas
também a busca por um equilíbrio delicado entre ética, compaixão e respeito à
autonomia individual.
A ênfase da relevância do
consentimento informado, sublinhando que a eutanásia deve ser conduzida
mediante a expressa concordância do paciente, após uma compreensão abrangente
das opções disponíveis, destaca-se como um ponto crucial. Este princípio ético
evidencia a necessidade premente de assegurar que escolhas tão significativas
sejam feitas de maneira esclarecida e consciente.
A dimensão religiosa inerente a
essa questão é de grande relevância; no entanto, reitera-se que a decisão
derradeira repousa sobre o paciente, incumbindo-lhe ponderar sobre essa
significativa questão ao tomar a última decisão.
Ao encerrar este relato, espero
ter ficado evidente que a discussão sobre a eutanásia não é apenas jurídica,
mas profundamente humana. Ela nos convoca a contemplar a complexidade da vida,
da morte e da compaixão, buscando um equilíbrio sensível entre a preservação da
dignidade individual e a consideração cuidadosa das implicações éticas
envolvidas.
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