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Mostrando postagens de maio, 2025

A solidão de quem percebe demais

Há uma solidão que não vem do abandono, nem da distância, nem da ausência de amor. Vem do excesso. Do excesso de lucidez. Daquela percepção aguda que atravessa a superfície das coisas e vê mais fundo — às vezes, fundo demais. É a solidão de quem percebe demais. Não falo de inteligência, nem de erudição. Falo de sensibilidade afiada. Daquele tipo de alma que escuta o que não foi dito, que percebe no olhar alheio o cansaço escondido, que decifra o silêncio como se fosse linguagem materna. De quem nota a tristeza antes do choro, o afastamento antes da ausência, a mentira dentro da verdade bem contada. E, por isso, carrega o fardo de ver o que os outros ainda não conseguem ver. Às vezes, essa percepção parece um dom. Outras vezes, uma maldição. Porque não é fácil manter conversas leves quando se sabe o que está por baixo. Não é fácil rir de certas banalidades quando se conhece o abismo atrás do riso. Não é fácil pertencer a um grupo quando o seu olhar caminha dois passos à frente —...

Quando as Lembranças Falham, o Coração Revela

A crença de que somos definidos pelas nossas memórias é quase um senso comum. As histórias que nos moldaram, as dores e alegrias vividas, os caminhos percorridos – tudo isso é frequentemente apontado como o alicerce da nossa identidade. Essa ideia de que nossas lembranças nos constituem é profundamente enraizada. Contudo, talvez essa perspectiva nos impeça de enxergar uma verdade mais sutil. A memória, embora nos ofereça a ilusão de um passado coeso e intacto, revela-se uma entidade fluida e, por vezes, traiçoeira. Longe de ser um arquivo estático, o ato de lembrar assemelha-se frequentemente a um processo de reconstrução . Essa maleabilidade da memória não é um defeito, mas sim uma característica fundamental do funcionamento do nosso cérebro. Nosso cérebro não armazena as memórias como gravações literais. Em vez disso, ele codifica fragmentos de informação que são posteriormente reunidos quando tentamos recordar um evento. Nesse processo de remontagem, o cérebro pode preencher lacun...

Quando o Amor Deixa de Bastar

E se bastasse amar para criar um filho? E se, ao invés de buscar a perfeição nos manuais, nos fóruns especializados e nas últimas descobertas da neurociência, os pais voltassem a confiar no instinto, na presença e no gesto imperfeito, mas afetuoso? A pergunta pode soar ingênua, até perigosa, num tempo em que há tanto a saber sobre a infância, o desenvolvimento emocional e os impactos das relações familiares. Mas talvez seja exatamente aí que mora o problema: a desconfiança crescente de que o amor, sozinho, já não seja suficiente. Ao se observarem as histórias contadas por adultos de hoje sobre suas infâncias, não é raro ouvir lembranças marcadas pela simplicidade. Falam do abraço do pai, da atenção da mãe, de uma conversa antes de dormir. Falam, até mesmo, dos rigores que sofreram — mas enxergam neles um gesto de cuidado, uma forma de amor, ainda que às vezes dura. Era uma criação imperfeita, sim, mas enraizada na presença e na entrega. Não havia tanto método, mas havia vínculo. E, p...