Enquanto esteve viva, minha avó
era o coração da nossa família. Desde que me entendo por gente, ela esteve lá,
com seu jeito doce e ao mesmo tempo firme, guiando a todos com palavras simples
e uma presença que transmitia segurança. Todos a respeitavam. Seus conselhos,
dados com parcimônia, eram ouvidos como verdades inquestionáveis. E seu amor
pelas pessoas era sempre visível, seja através dos cuidados, dos gestos pequenos
ou da paciência interminável.
Aos 85 anos, ela teve um sonho
que a marcou profundamente. Nunca fui de ouvir muito sobre sonhos, mas este ela
me contou repetidas vezes. Era algo mais significativo, uma espécie de
presságio, talvez.
Ela contava que, naquele sonho,
havia uma serenidade incomum, uma paz tão profunda que era quase impossível
descrever. Curiosamente, mesmo nesse estado de calma absoluta, algo dentro dela
lhe dizia que seu momento havia chegado. No entanto, não havia medo, apenas uma
aceitação tranquila. A cena mudava suavemente: suas mãos, que antes repousavam
abertas sobre as flores, começavam a se fechar lentamente. De repente, ela se
via deitada em sua cama, olhando para o teto. A dor era apenas um som distante,
como se seu corpo já não lhe pertencesse mais. O mundo ao redor se tornava
turvo, e vozes indistintas vinham de longe, sem pressa, como se todos ali já soubessem
que ela tinha partido. E, no final, ela costumava acrescentava que, quando
chegasse a sua hora, queria partir assim.
Mas a vida seguiu, e minha avó
viveu mais dez anos. Aos 95, a vitalidade de antes já não era mais a mesma. Uma
doença avançou lentamente, tirando aos poucos a sua independência, o que para
ela foi a maior luta. Para alguém tão ativa e sempre acostumada a cuidar dos
outros, ser cuidada era uma batalha que ela enfrentava com resignação. Aquela
força que todos admiravam estava lá, mas escondida sob camadas de fragilidade
que o tempo impôs.
Nos últimos meses, ao seu lado no
hospital, eu pensava sobre aquele sonho. Será que, se ela tivesse partido
naquela época, como sonhou, as lembranças que guardamos dela seriam diferentes?
Talvez nos lembrássemos mais da avó que andava pelo quintal, que colhia ervas e
contava histórias. Talvez a imagem da mulher forte e amorosa que ela foi não
tivesse sido ofuscada pelos anos de luta contra a doença.
Nos seus momentos no hospital,
ela voltou a falar do sonho. "Às vezes me pergunto... se não teria sido
melhor assim", ela murmurou, a voz baixa, quase se desculpando por pensar
nisso. Ela sempre foi uma mulher de fé, alguém que acreditava no valor de cada
dia de vida, por mais difícil que fosse. Mas eu sabia que a serenidade daquela
despedida imaginária no jardim, sem dor, sem sofrimento, era algo que a seduzia.
Ela nunca admitiu abertamente,
porque entendia que cada minuto que viveu teve seu valor. Sempre se orgulhou de
sua resiliência, da capacidade de suportar com dignidade os desafios que vieram
com a idade. Mas, no fundo, eu percebia que, por trás da aceitação, havia uma parte
dela que desejava que o sonho tivesse sido a sua despedida. E quem poderia
culpá-la?
Embora esta história seja uma
lembrança pessoal sobre os últimos anos da vida da minha avó, ela toca em algo
muito maior, uma questão que vai além da nossa relação familiar e das memórias
de quem ela foi. Ao refletir sobre o sonho que ela teve e o contraste com sua longa
luta contra a doença, o texto também sugere uma discussão delicada e
necessária: o direito de escolher uma despedida mais digna, especialmente em
situações de sofrimento físico e emocional prolongado.
Minha avó, que sempre foi uma
pessoa ativa e independente, se viu limitada por uma doença que pouco a pouco a
afastava da vida que conhecia. Nos momentos em que falava sobre o sonho, com a
tranquilidade que ele trazia, era impossível não pensar sobre o valor da vida
em seus últimos momentos e sobre a dor de prolongar a existência quando o corpo
e a mente já estão esgotados.
Essa reflexão levanta uma
discussão maior, que não diz respeito apenas à história da minha avó, mas a
todas as pessoas que enfrentam o fim da vida com dor e sofrimento. A ideia de
abreviar a morte, seja por meio de eutanásia, cuidados paliativos mais
humanizados, ou o simples respeito à escolha do paciente, desponta como uma
questão ética e emocional que muitas famílias e indivíduos já enfrentam e que deve
se intensificar nas próximas décadas.
O sonho de uma despedida pacífica
que minha avó descrevia abre um espaço para pensar sobre o direito de cada um
em decidir quando e como partir. Seria justo prolongar a vida a qualquer custo,
quando ela já não carrega mais a qualidade que valorizamos? Ou será que, em
alguns casos, a verdadeira dignidade está em permitir que a pessoa escolha um
final sereno, livre do sofrimento?
Essa é uma discussão complexa e
cheia de nuances, que envolve crenças pessoais, religiosas e éticas. No
entanto, o relato da minha avó e de sua luta silenciosa coloca em foco a
importância de pensar não apenas sobre como vivemos, mas também sobre como
morremos. E, talvez, o maior presente que podemos dar àqueles que amamos seja o
direito de partir em paz, assim como minha avó sonhou.
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