Houve um tempo — talvez não muito distante, talvez apenas idealizado — em que a ignorância não era um erro, mas um abrigo. Os males do mundo existiam, sim, mas estavam longe, nebulosos, confinados à rareza das manchetes ou ao sussurro dos mais velhos. Era possível crescer sem saber da crueldade em tempo real, sem carregar nos ombros o peso de um planeta doente, de sistemas que desmoronam, de vidas esmagadas por engrenagens invisíveis.
Hoje, esse tempo se foi. E embora ninguém o tenha declarado encerrado, todos nós o sentimos partir. Como se a infância do mundo tivesse acabado — não só a nossa, mas a da própria humanidade. Vivemos agora o luto de uma inocência perdida, não por escolha, mas por excesso de exposição. A luz da consciência invadiu os últimos esconderijos do não-saber. E com ela, veio a fadiga.
As crianças de agora já não olham o céu com a mesma leveza. Sabem o que é um incêndio florestal, mesmo que nunca tenham visto um. Aprendem cedo que a terra aquece, que os mares sobem, que a natureza grita. A infância, antes território do encantamento, se tornou o primeiro campo de batalha contra o medo. E nós, adultos, seguimos tentando protegê-las — mas como, se nós mesmos não sabemos mais onde repousar?
O que nos angustia, talvez, não seja apenas o colapso do mundo, mas o colapso da possibilidade de viver sem saber de tudo. A cada notificação, a cada gráfico, a cada denúncia que se espalha como fumaça, somos arrancados de qualquer tentativa de refúgio. Já não é possível habitar o dia com a leveza de quem ignora. E quanto mais sabemos, menos suportamos.
Há uma beleza cruel nessa nova lucidez: ela nos aproxima da verdade, mas também nos afasta do consolo. Porque a verdade, quando não vem acompanhada de sentido ou ação, pode ser uma forma de tortura. Vemos demais, entendemos demais — e fazemos de menos. Nossa agência não cresceu na mesma proporção da nossa percepção. Somos crianças crescidas demais, habitando um mundo onde não há mais adultos com respostas.
Antigamente, os mitos nos amparavam. As religiões ofereciam esperança. As comunidades acolhiam o desespero. Hoje, cada um carrega sua angústia como quem esconde um segredo vergonhoso. Sofremos sozinhos, e em silêncio. Não por falta de empatia, mas porque todos ao nosso redor estão igualmente sobrecarregados.
Talvez, em meio a tudo isso, o que mais doa seja essa impossibilidade de retorno. Não há caminho de volta para o tempo em que podíamos não saber. Já vimos demais. Já crescemos. E o mundo, esse mundo escancarado, não nos permite mais fechar os olhos.
Resta-nos, então, esse intervalo indefinido — entre a inocência perdida e a maturidade que ainda não chegou. Um tempo suspenso, onde tentamos viver com beleza em meio aos escombros. Não por heroísmo, mas por ausência de alternativa.
E talvez, só talvez, nesse gesto de continuar apesar de tudo, haja algo de profundamente humano. Não exatamente esperança, mas um vestígio de resistência. Uma memória vaga do que fomos, e um desejo silencioso de ainda ser — mesmo que seja no meio do caos.
No fim, talvez não nos reste
outra escolha senão seguir conscientes, mesmo sem força. Amar, mesmo exaustos.
Sentir, mesmo quando dói. E continuar — não porque há esperança de salvação,
mas porque há dignidade em permanecer lúcido num mundo que insiste em
desmoronar.
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