Fui fiel a mim. Esta frase, que durante tantos anos carreguei como medalha, hoje me escorre pelas mãos como um metal enferrujado. Porque ser fiel a si mesmo, percebo agora, pode ser também uma forma muito sofisticada de prisão. Quando a vida ainda era um campo aberto e promissor, agarrei-me com força àquilo que julguei ser minha essência. Defendi meus gostos, minhas certezas, meus limites. Preservar meu eu me parecia um ato de coragem num mundo feito de concessões. Mas agora, quando olho para trás com os olhos da maturidade — esses olhos que não pedem licença para enxergar o que antes era invisível —, começo a suspeitar que talvez eu tenha errado a dose.
É uma ironia quase poética: só quando o tempo já não nos dá tempo é que começamos a desconfiar do eu que escolhemos proteger. A frustração, então, não é apenas por aquilo que não vivemos — é pelo modo como dissemos "não" a tantas possibilidades em nome de uma integridade mal compreendida. Talvez eu devesse ter sido menos leal a mim, mais disposto a experimentar outros eus que espiavam pela fresta, pedindo a chance de existir.
Mas a vida, essa mestra impiedosa, não oferece reprises. As cenas já encenadas estão seladas na memória e não há palco onde possamos testá-las de novo, agora com o script mais lúcido que a dor nos ensinou a escrever. O que resta é essa sensação de que a narrativa da minha vida, antes limpa, épica, coerente, agora se desfaz em páginas amareladas, cheias de rasuras e parágrafos que hoje reescreveria — se pudesse.
Há uma frustração profunda nesse reconhecimento, porque ele não chega no tempo em que ainda poderíamos agir sobre ele. É como descobrir o mapa quando o tesouro já foi saqueado. Ainda assim, talvez essa dor tenha um valor oculto. Talvez o verdadeiro amadurecimento seja mesmo esse mergulho brutal nas verdades que evitamos por tanto tempo, essa coragem de olhar para a própria história sem maquiagem. Uma espécie de libertação amarga, mas necessária. Não para mudar o passado, mas para nos libertar da ilusão de que sempre fomos heróis.
Ser fiel a si mesmo pode ser um
gesto nobre, mas também pode ser um modo disfarçado de medo. Um medo que só a
maturidade tem coragem de nomear. E quando enfim o nomeamos, é tarde demais
para mudar... mas cedo o bastante para entender. E, às vezes, entender já é
alguma forma de paz.
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