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O Que Restou do Amanhã?

Houve um tempo em que o futuro tinha forma. Ainda que incerto, ainda que repleto de surpresas, ele se erguia diante de nós como um baralho cuidadosamente embaralhado: não sabíamos a ordem das cartas, mas conhecíamos cada naipe, cada figura, cada número. Cada passo dado hoje tinha um eco previsível amanhã, e até mesmo o medo ou a esperança carregavam um consolo — sabíamos que todas as possibilidades estavam ali, à espera de serem descobertas.

Hoje, tudo mudou. O futuro perdeu substância. Não há cartas sobre a mesa, não há mesa, talvez nem baralho. Apenas um espaço indefinido, um vazio onde tudo pode nascer ou não nascer, e onde qualquer gesto que imaginamos parece se dissolver antes de tocar algo real. Caminhar em direção a ele é sentir os pés deslizarem sobre um chão que desaparece a cada passo, uma corda suspensa sobre o nada, fina, instável e impossível de agarrar.

E há uma tristeza silenciosa nesse contraste. A nostalgia não vem apenas de desejar o que se perdeu, mas de perceber a densidade que existia naquele futuro antigo, a firmeza que nos permitia sonhar, planejar, esperar. Tudo isso agora se tornou sombra, uma lembrança difusa de tempos em que o amanhã não era uma ameaça, mas uma promessa, mesmo quando incerta.

O antigo futuro tinha cheiro de tinta fresca, de papel, de roupa comprada para durar. Tinha textura, peso, forma. O novo futuro é vento, névoa, acaso absoluto. E ao contemplar essa diferença, sentimos a melancolia de quem olha para um horizonte que recua a cada tentativa de aproximação, e a nostalgia de um tempo em que, pelo menos, podíamos tocar o que ainda não havia chegado.

Viver sem esse futuro tangível muda a percepção de cada instante. O presente, antes degrau para algo maior, agora se apresenta como território absoluto e frágil. Cada escolha carrega o peso de um salto no escuro, não mais sobre um chão firme, mas sobre um vazio onde tudo pode existir ou se desfazer antes de ser percebido.

Há uma estranha urgência nesse agora sem amanhã. Movemo-nos como se cada gesto pudesse ser o último, não por perigo imediato, mas por consciência do que não sabemos se virá. O tempo parece comprimir-se e expandir-se simultaneamente: os minutos tornam-se densos de p


ossibilidade e ao mesmo tempo etéreos, escorregadios. O ritmo da vida, antes cadenciado pelo compasso do futuro, agora é instável, imprevisível, e exige presença absoluta.

E, ainda assim, há uma beleza sombria nessa fragilidade. O desconhecido total nos obriga a experimentar o presente em sua plenitude, a perceber nuances que antes passariam despercebidas. Cada instante carrega a intensidade de um milagre efêmero, e a consciência dessa fragilidade nos torna mais atentos, mais vivos, mesmo que dolorosamente conscientes do que perdemos.

O contraste com o antigo futuro é doloroso. Ele não era perfeito — carregava suas incertezas, seus riscos —, mas possuía uma estrutura, uma promessa que permitia existir com algum consolo. Hoje, essa promessa se dissolveu, e o olhar lançado ao horizonte encontra apenas névoa. A nostalgia não é simples saudade: é o lamento por um tempo em que podíamos tocar o futuro, ainda que apenas com os dedos da imaginação.

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