Pular para o conteúdo principal

Postagens

O Preço de Ser Eu

F ui fiel a mim. Esta frase, que durante tantos anos carreguei como medalha, hoje me escorre pelas mãos como um metal enferrujado. Porque ser fiel a si mesmo, percebo agora, pode ser também uma forma muito sofisticada de prisão. Quando a vida ainda era um campo aberto e promissor, agarrei-me com força àquilo que julguei ser minha essência. Defendi meus gostos, minhas certezas, meus limites. Preservar meu eu me parecia um ato de coragem num mundo feito de concessões. Mas agora, quando olho para trás com os olhos da maturidade — esses olhos que não pedem licença para enxergar o que antes era invisível —, começo a suspeitar que talvez eu tenha errado a dose. É uma ironia quase poética: só quando o tempo já não nos dá tempo é que começamos a desconfiar do eu que escolhemos proteger. A frustração, então, não é apenas por aquilo que não vivemos — é pelo modo como dissemos "não" a tantas possibilidades em nome de uma integridade mal compreendida. Talvez eu devesse ter sido menos l...

O Vazio que Nos Move

Ele não chega com alarde. Nunca chegou. Desde sempre, habita um canto da casa onde morei, da rua por onde voltava sozinho, da cadeira vazia no jantar de domingo. Às vezes se esconde nas dobras do lençol, às vezes caminha ao meu lado, sem pressa, sem pedir nada — apenas presente. Chamá-lo de vazio talvez seja injusto. Ele tem olhos, embora não pisque. Tem braços, embora não abrace. Tem nome, mas nunca o diz. Crescemos juntos. Enquanto eu aprendia a caminhar, ele aprendia a se esgueirar para dentro dos meus silêncios. Quando perdi o que nunca tive, ele foi o primeiro a me dizer, sem palavras, que haveria outras perdas. E que nenhuma delas me destruiria por completo. Com o tempo, deixei de temê-lo. Descobri que ele me acompanha não para me lembrar do que falta, mas para manter vivo o desejo de procurar. Ele não é a ausência em si — é o espaço onde cabem as possibilidades. Não me empurra para frente com promessas, mas me faz mover para que o movimento não cesse. Nos dias de festa, senta-se...

Quem Viveu Por Você Enquanto Você Vivia para o Futuro?

Agora que o tempo se estreita e os dias não são mais promessas, posso finalmente dizer aquilo que evitei a vida inteira:   Eu vivi para o futuro. Como quem trabalha para um patrão que nunca aparece. Fiz planos, sacrifícios, renúncias. Aguentei o insuportável dizendo a mim mesmo: “um dia vai valer a pena”. E esse dia nunca chegou — pelo menos, não da forma que eu esperava.   Houveram momentos bons, claro. Frutos de tudo que construí, pessoas que amei, aprendizados que carrego comigo. Mas o amanhã sempre foi uma miragem na linha do horizonte. Quando parecia que estava perto, já havia se transformado em outro plano, mais distante, mais exigente, mais ameaçador. Era como se o depois estivesse sempre um pouco além do alcance do esforço de hoje.   E eu segui. Segui sem respirar direito. Sem me permitir pausas. Sem perder tempo com bobagens. Porque bobagens não constroem um futuro sólido. E eu queria solidez.   Eu recusei convites, silenciei impulsos, adiei viagen...

A traição necessária

Durante muito tempo, sustentamos a ideia de que amadurecer é acumular experiências, aprender a se defender, tornar-se mais forte. Mas há outro tipo de maturidade — mais secreta, mais solitária — que não se resume a resistir ao mundo, mas a desfazer-se das fantasias com que tentamos, por tanto tempo, proteger-nos dele. Essas fantasias não surgem por acaso. São construídas ao longo da infância e da juventude como andares imaginários sobre os quais conseguimos habitar um mundo que ainda nos é estranho. A criança fantasia que será admirada, aceita, querida por ser quem é. O adolescente sonha com um amor perfeito que o completará, com uma profissão que o resgatará, com uma vida que finalmente fará sentido. Tudo isso não é mentira — é sobrevivência. São as primeiras formas de esperança. Mas o problema das ilusões não é que sejam falsas — é que, um dia, tornam-se insuficientes. Na idade adulta, aprendemos a administrá-las. Não acreditamos mais que a felicidade será perfeita, mas ainda e...

A solidão de quem percebe demais

Há uma solidão que não vem do abandono, nem da distância, nem da ausência de amor. Vem do excesso. Do excesso de lucidez. Daquela percepção aguda que atravessa a superfície das coisas e vê mais fundo — às vezes, fundo demais. É a solidão de quem percebe demais. Não falo de inteligência, nem de erudição. Falo de sensibilidade afiada. Daquele tipo de alma que escuta o que não foi dito, que percebe no olhar alheio o cansaço escondido, que decifra o silêncio como se fosse linguagem materna. De quem nota a tristeza antes do choro, o afastamento antes da ausência, a mentira dentro da verdade bem contada. E, por isso, carrega o fardo de ver o que os outros ainda não conseguem ver. Às vezes, essa percepção parece um dom. Outras vezes, uma maldição. Porque não é fácil manter conversas leves quando se sabe o que está por baixo. Não é fácil rir de certas banalidades quando se conhece o abismo atrás do riso. Não é fácil pertencer a um grupo quando o seu olhar caminha dois passos à frente —...

Quando as Lembranças Falham, o Coração Revela

A crença de que somos definidos pelas nossas memórias é quase um senso comum. As histórias que nos moldaram, as dores e alegrias vividas, os caminhos percorridos – tudo isso é frequentemente apontado como o alicerce da nossa identidade. Essa ideia de que nossas lembranças nos constituem é profundamente enraizada. Contudo, talvez essa perspectiva nos impeça de enxergar uma verdade mais sutil. A memória, embora nos ofereça a ilusão de um passado coeso e intacto, revela-se uma entidade fluida e, por vezes, traiçoeira. Longe de ser um arquivo estático, o ato de lembrar assemelha-se frequentemente a um processo de reconstrução . Essa maleabilidade da memória não é um defeito, mas sim uma característica fundamental do funcionamento do nosso cérebro. Nosso cérebro não armazena as memórias como gravações literais. Em vez disso, ele codifica fragmentos de informação que são posteriormente reunidos quando tentamos recordar um evento. Nesse processo de remontagem, o cérebro pode preencher lacun...

Quando o Amor Deixa de Bastar

E se bastasse amar para criar um filho? E se, ao invés de buscar a perfeição nos manuais, nos fóruns especializados e nas últimas descobertas da neurociência, os pais voltassem a confiar no instinto, na presença e no gesto imperfeito, mas afetuoso? A pergunta pode soar ingênua, até perigosa, num tempo em que há tanto a saber sobre a infância, o desenvolvimento emocional e os impactos das relações familiares. Mas talvez seja exatamente aí que mora o problema: a desconfiança crescente de que o amor, sozinho, já não seja suficiente. Ao se observarem as histórias contadas por adultos de hoje sobre suas infâncias, não é raro ouvir lembranças marcadas pela simplicidade. Falam do abraço do pai, da atenção da mãe, de uma conversa antes de dormir. Falam, até mesmo, dos rigores que sofreram — mas enxergam neles um gesto de cuidado, uma forma de amor, ainda que às vezes dura. Era uma criação imperfeita, sim, mas enraizada na presença e na entrega. Não havia tanto método, mas havia vínculo. E, p...

O Luto do Mundo

Houve um tempo — talvez não muito distante, talvez apenas idealizado — em que a ignorância não era um erro, mas um abrigo. Os males do mundo existiam, sim, mas estavam longe, nebulosos, confinados à rareza das manchetes ou ao sussurro dos mais velhos. Era possível crescer sem saber da crueldade em tempo real, sem carregar nos ombros o peso de um planeta doente, de sistemas que desmoronam, de vidas esmagadas por engrenagens invisíveis. Hoje, esse tempo se foi. E embora ninguém o tenha declarado encerrado, todos nós o sentimos partir. Como se a infância do mundo tivesse acabado — não só a nossa, mas a da própria humanidade. Vivemos agora o luto de uma inocência perdida, não por escolha, mas por excesso de exposição. A luz da consciência invadiu os últimos esconderijos do não-saber. E com ela, veio a fadiga. As crianças de agora já não olham o céu com a mesma leveza. Sabem o que é um incêndio florestal, mesmo que nunca tenham visto um. Aprendem cedo que a terra aquece, que os mares so...

Virtude ou Covardia? O Limite da Moralidade

Sempre me perguntei se sou uma pessoa moral ou apenas alguém condicionado a temer as consequências de seus atos. Quando me vejo diante de uma tentação, a voz que me impede de ceder fala com o tom da minha consciência, mas até que ponto essa voz é realmente minha? Será que é apenas um eco das normas que absorvi ao longo da vida, um reflexo dos olhares reais ou imaginários que me acompanham? Se a moralidade fosse um instinto puro, algo inato, talvez não houvesse dilema. Mas se fosse apenas medo disfarçado, então o que chamamos de virtude seria apenas a covardia vestida de honra. Tento observar minhas próprias decisões de fora, como se eu fosse um estranho a mim mesmo, mas a questão continua escorregadia. Quando escolho agir corretamente sem ninguém para testemunhar, isso prova que sou moral? Ou apenas demonstra que internalizei um observador invisível, um juiz que me acompanha mesmo quando estou só? O que me intriga é que nem sempre tememos as mesmas consequências. Alguns evitam um a...

O Legado Americano em Xeque

Historicamente, a ordem mundial imposta por qualquer potência sempre reflete sua própria estrutura interna. Isso não acontece por acaso, governos, empresas e instituições locais estão acostumados a operar dentro de um determinado sistema e, se forem forçados a administrar um modelo externo conflitante, surgirão resistências.   O poder global exige continuidade, previsibilidade e legitimidade — mesmo quando imposto pela força. Para garantir esses elementos, as regras que uma nação projeta para o mundo precisam ser aquelas que sustentam sua estabilidade interna. Caso contrário, há uma fratura entre a política externa e a realidade doméstica, uma contradição que acaba por minar a própria ordem que essa potência busca estabelecer. Os Estados Unidos são o exemplo mais recente desse fenômeno. A ordem liberal internacional criada no pós-guerra foi uma extensão direta do seu próprio sistema político e econômico: livre mercado, instituições multilaterais, direitos individuais e a primazia...